MEMÓRIAS DO MEU DESEMBARQUE NA GUERRA DA GUINÉ.
Foi durante a manhã do dia 24 de Setembro de 1970, faz hoje 52 anos, depois de seis dias de viagem e de seis dias de enjoos, que eu desembarquei do navio Ana Mafalda, na Província da Guiné em Bissau, para cumprir dois anos e vinte dias de comissão de serviço militar obrigatório na GUERRA COLONIAL.
Postos os pés fora do barco lá no cais, um calor escaldante, suor em bica e sem nada para saciar a sede, enfiaram-me num jipe que me levou até ao quartel dos Adidos, onde após a formatura e apresentação na parada, com direito ao discurso de boas vindas para a guerra, já se encontrava lá o Serrinha de Montão (da Ranha) à minha espera com uma lata de FANTA fresquinha na mão e ofereceu-ma logo. Ele já sabia do mal que a gente sofria logo que pisássemos pela primeira vez aquela terra vermelha aquele calor sufocante e ar irrespirável. Foi a primeira vez que eu bebi Fanta, eu nem sabia que bebida era aquela, ele disse-me bebe que é bom sabe a laranja e era mesmo bom.!
Esse rapaz, não morreu na guerra , mas infelizmente, constou-me por carta da minha mãe do dia 23-05-1971, que ele tinha morrido, salvo erro de acidente de viação penso que em Gaia ou no Porto logo pouco tempo depois de cá ter chegado.
Lembro-me que ele se prontificou para ir comigo à cidade procurar a casa onde morava o filho da Srª Mariquinhas e do Sr. Carlos de Montão que na época era lá Juiz, para eu lhe entregar uma carta que levava da mãe com uma recomendação.
Posso ter-me esquecido de muitos acontecimentos da Guerra, mas este gesto de bondade do Serrinha para me saciar a cede, da minha transferência de Bissau para o Posto de Transmissões STM de Bafatá e da minha paragem forçada em Bambadinca no dia 24-10-1970, a minha entrada naquela Capelinha daquele aquartelamento para ir rezar e ao caminhar em direcção ao altar, deparo com a arrepiante imagem de quatro urnas com soldados que tinham morrido um ou dois dias antes em combate depositadas ali no centro mesmo à frente dos meus pés, iluminadas apenas pela luz ténue de velas acesas, acho que o choque foi tão grande e o medo foi tanto que já não sabia rezar, saí com as pernas a tremer sem conhecer ali ninguém naquele quartel, vim para junto do soldado que estava de guarda a porta de armas e lá fiquei na companhia dele até as tantas, já que não tinha cama para dormir nem direito a rancho. De madrugada começou a trovoar e a chover torrencialmente, lá fui eu para dentro de uma viatura que estava lá estacionada a espera que amanhecesse para seguir numa coluna para o Posto de Transmissões de Bafatá.
Já lá vão 52 anos, e a esta distância eu lembro-me dele daquela alma caridosa que me saciou a cede e desta arrepiante imagem daquelas urnas com soldados mortos depositadas naquela Capelinha como que tivesse sido ontem !
Foi mais uma viagem atribulada, cheia de episódios e de medos, nesta, já eu ia armado de G3 na mão, e cinturão com cartucheiras municiadas à cinta e uma ração de combate que teve de durar para dois dias, feita num pequeno barco CIVIL pelo rio Geba acima desde Bissau até Bambadinca, e daqui de coluna até Bafatá. A guia de marcha dizia que o meu transporte de Bissau até Bafatá era de barco, só que em Bambadinca obrigaram-me a sair, dizendo que o barco não seguia mais viagem para eu ir pedir transporte a um quartel que havia ali perto. Eu era o único soldado, e o único branco que seguia naquele barco, aquela gente falava, falava e eu não percebia uma única palavra, ia cheio de pavor, desconfiado, encostadinho a um canto com medo que me matassem e me lançassem ao rio. Só os acontecimentos desta viagem que começou em Bissau e terminou em Bafatá na manhã do dia 25-10-1970, davam para escrever um livro e que livro !!!