Mensagem de um velhinho

sábado, 29 de outubro de 2022

CINQUENTA ANOS DEPOIS DA VINDA DA GUERRA.




O CINQUENTENARIO DO MEU REGRESSO DA GUERRA.

Dia 14 DE Outubro de 1972

 

Embarquei do aeroporto da Guiné Bissau agora já num avião da  TAP salvo erro num boeing 727 e desembarquei no aeroporto de Lisboa na tarde do dia 14 de Outubro de 1972, apresentando-me em seguida no Quartel Geral dos Adidos na Calçada da Ajuda, para proceder ao espolio de todo o fardamento militar, depois de ter cumprido dois anos e vinte dias de comissão ao serviço da Pátria desta Pátria que depois me viria a esquecer assim como a maioria daqueles que como eu foram obrigados a abandonar tudo e todos para ir combater numa guerra inglória.

Tinha desembarcado a 24 de Setembro de 1970, primeiro dia de comissão cheio de medos e incertezas , à noite enquanto alguns militares iam passear para a cidade, eu fui rezar à Capela de Santa Luzia que ficava na Avenida que vinha do Quartel das Transmissões em direcção  à baixa da cidade onde pedi a Nossa Senhora que não me deixasse morrer naquela guerra, naquela terra tão distante da família, que se eu tivesse de morrer tão novo, que me deixasse morrer antes na minha terra, junto da minha mãe e irmãos.

Assim, na manhã do dia 14 de Outubro de 1972, antes de regressar e de vir para o avião, fui lá novamente à capelinha de Santa Luzia rezar e agradecer-lhe por me ter protegido  e poupado a vida durante a guerra.

Depois do regresso, começa a reconstrução de uma nova vida toda ela cheia de ilusões, projectos, acabados e inacabados, profundas desilusões, desgostos sofridos, sonhos destruídos, provocados pelo silencio amargo daqueles que se foram afastando dia após dia, esquecendo-nos, e de que há família para alem dos amigos das redes sociais. Se é verdade que a redes sociais aproximaram muitas pessoas, não é menos verdade, que também afastaram irremediavelmente muitas famílias. A importância da família, da sua união e indivisibilidade, eu tive-a sempre no meu horizonte, como pilar sustentável, da paz e harmonia que devia reinar enquanto tivéssemos um sopro de vida, enquanto respirássemos. Talvez por ter vindo a assistir ao ruir da alegria e da harmonia de algumas famílias como um baralho de cartas, eu sinto medo, eu sinto pavor que um dia os meus netos deixem de ser amigos verdadeiros, irmãos inseparáveis, de ser confidentes um do outro, porque enquanto eles forem confidentes um do outro, nada nem ninguém os separará e a paz a harmonia a concórdia a alegria e o amor fraterno reinará no coração deles até ao fim das suas vidas, que é o meu maior desejo.  A família deixará sempre marcas e exemplos bons ou maus, que o tempo não apagará, por mais que nós digamos que o tempo apaga tudo, nada é mais errado !!! 

sábado, 24 de setembro de 2022


 

MEMÓRIAS DO MEU DESEMBARQUE  NA GUERRA DA GUINÉ.


 

Foi durante a manhã do dia 24 de Setembro de 1970, faz hoje 52 anos, depois de seis dias de viagem e de seis dias de enjoos, que eu desembarquei do navio Ana Mafalda, na Província da Guiné em Bissau, para cumprir dois anos e vinte dias de comissão de serviço militar obrigatório na GUERRA COLONIAL.

Postos os pés fora do barco lá no cais, um calor escaldante, suor em bica e sem nada para saciar a sede, enfiaram-me num jipe que me levou até ao quartel dos Adidos, onde após a formatura e apresentação na parada, com direito ao discurso de boas vindas para a guerra, já se encontrava lá o Serrinha de Montão (da Ranha) à minha espera com uma lata de FANTA fresquinha na mão e ofereceu-ma logo. Ele já sabia do mal que a gente sofria logo que pisássemos pela primeira vez aquela terra vermelha aquele calor sufocante  e ar  irrespirável.  Foi a primeira vez que eu bebi  Fanta, eu nem sabia que bebida era aquela,  ele disse-me bebe que é bom sabe a laranja e era mesmo bom.!

Esse rapaz, não morreu na guerra , mas infelizmente, constou-me por carta da minha mãe do dia 23-05-1971,  que ele tinha morrido, salvo erro de acidente de viação penso que em Gaia ou no Porto logo pouco tempo depois de cá ter chegado.

Lembro-me que ele se prontificou para ir comigo à cidade procurar a casa onde morava o filho da Srª Mariquinhas e do Sr. Carlos de Montão que na época era lá Juiz, para eu  lhe entregar uma carta  que levava da mãe com uma recomendação.

Posso ter-me esquecido de muitos acontecimentos da Guerra, mas este gesto de bondade do Serrinha para me saciar a cede,  da minha transferência de Bissau para o Posto de Transmissões STM de  Bafatá e da minha paragem forçada em Bambadinca no dia 24-10-1970,  a minha entrada naquela Capelinha daquele aquartelamento para ir rezar  e ao caminhar em direcção ao altar,  deparo com a arrepiante imagem de quatro urnas com soldados que tinham morrido um ou dois dias antes em combate depositadas ali no centro mesmo à frente dos meus pés,  iluminadas apenas pela luz ténue de velas acesas, acho que o choque foi tão grande e o medo foi tanto que já não sabia rezar, saí com as pernas a tremer sem conhecer ali ninguém naquele quartel, vim para junto do soldado que estava de guarda a porta de armas e lá fiquei na companhia dele até as tantas, já que não tinha cama para dormir nem direito a rancho. De madrugada começou a trovoar e a chover torrencialmente, lá fui eu para dentro de uma viatura que estava lá estacionada a espera que amanhecesse para seguir numa coluna para o Posto de Transmissões  de Bafatá.

Já lá vão 52 anos, e a esta distância eu lembro-me dele daquela alma caridosa que me saciou a cede e desta arrepiante imagem daquelas  urnas com soldados mortos depositadas naquela Capelinha como que tivesse sido ontem !

Foi mais uma viagem atribulada,  cheia de episódios e de medos,  nesta,  já eu ia armado de G3 na mão, e cinturão com  cartucheiras municiadas à cinta e uma ração de combate que teve de durar para dois dias,  feita num pequeno barco CIVIL pelo rio Geba acima desde  Bissau até Bambadinca,  e daqui de coluna até Bafatá. A guia de marcha dizia que o meu  transporte de Bissau até Bafatá era de barco, só que em Bambadinca obrigaram-me a sair, dizendo que o barco não seguia mais viagem para eu ir pedir transporte  a um quartel que havia ali perto. Eu era o único soldado,  e o único branco que seguia naquele barco,  aquela gente falava, falava e eu não percebia uma única palavra, ia cheio de pavor, desconfiado, encostadinho a um canto com medo que me matassem e me lançassem ao rio. Só os acontecimentos desta viagem que começou em Bissau e terminou em Bafatá na manhã do dia 25-10-1970, davam para escrever um livro e que livro !!!